terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

UM RETORNO NO TEMPO


Imaginar a vida de toda uma cidade rolando aos nossos olhos famintos de conhecimentos. Mergulhar no pensamento de seus habitantes mais velhos e saber as coisas que eles viveram. Descobrir-se água do rio, sentindo a brisa ampla a percorrê-lo. Transmutar-se nas pedras dos arrecifes e aceitar o impacto vigoroso das águas do Oceano Atlântico. Caminhar por ruas que não mais existem, como a Rua de Santa Tereza, no bairro de São José, onde uma das minhas tias morava. Ir à Festa da Mocidade no fim de cada ano e sentir de perto a algazarra juvenil do mundo recifense. Olhar os barcos à vela ancorados em frente ao Grande Hotel na Rua Martins de Barros. Desejar ser gente grande para poder entrar no Restaurante Flutuante, em frente à Livraria Ramiro Costa, bem como dependurar-se nos bondes com destino à Olinda, sentindo o vento no rosto, aglutinando o prazer da aventura....
Por muitas dessas coisas eu gostaria de ter vivido no Recife do tempo de meus pais. Poucas, pouquíssimas coisas usufruí, só nas oportunidades de quando meu pai me levava nas suas andanças, mostrando e ensinando como caminhar pelas artérias da cidade.
Recordo que andei de bonde, quando esse meio de transporte já estava desaparecendo. Visitei a Festa da Mocidade dois anos antes dela deixar de existir. Caminhei de mãos dadas com meu pai da proa a popa de um dos muitos barcos à vela ancorados em frente ao Grande Hotel. E na casa da minha tia Maria José, na Rua de Santa Tereza, pernoitei algumas vezes nas minhas caminhadas de adolescente.
O Recife ainda é o Recife. Mas tem um quê de estranho em suas atuais paisagens. Elas foram transformadas. Perderam o toque mágico de quando eu era menino. O Recife ainda vive muito vigorosamente nas minhas passadas de adulto por suas inúmeras ruas, mas essas ruas, hoje, são cruéis, abandonadas, frias e muito tristes.
De todo aquele casario do bairro de São José, antes de sua derrubada para a construção da Avenida Dantas Barreto, eu lembro a magia de um tempo. Da Praça da Independência sem aquele enorme monstrengo que é o Edifício Lar Brasileiro. Lembro a Ponte Giratória e da primeira vez que a vi rodopiar para dar passagem aos veleiros.
Uma pena que os homens que governaram e governam o Recife nunca tenham tido consciência de que o passado deve ter continuidade. A cidade devia ter sido mantida como os europeus fazem com as deles. Bastava embelezá-la, torná-la humana e não desumana como ela hoje se apresenta nas suas ruas fedendo a peixe podre, nas colunas sujas dos prédios da Avenida Guararapes, invadidos por centenas de sem-teto, nos monumentos cheios de pichações, na perigosa escuridão amiga dos meliantes a envolver as avenidas e as esquinas e as calçadas.
Os cinemas desapareceram. Os cinemas do Recife eram mágicos! Eram salas de sonhos! Espaços para amores fugazes e encontros proibidos. Cinema Moderno, Cinema São Luiz, Cine Art-Palácio, Cine Trianon, retratos de um tempo que se perdeu no caminho das minhas horas.
Mas o Recife ainda é o Recife que arrebata minha vida, ao sentir dentro de mim a vivência de horas de solidão nas suas ruas e avenidas. O Recife ainda é o poema que pretendo escrever um dia, quando os instantes alegres de meu tempo mergulharem nas lembranças tristes e alegres de minha humanidade.
Se eu puder, em outra encarnação, escolher uma cidade para nascer e viver, que o Grande Neutro me faça voltar atrás no tempo. Faça com que eu nasça na época em que os grandes veleiros faziam rodopiar a ponte Giratória para dar-lhes passagem. Ou, então, que me dê o caminho das horas de ser humano adulto, em frente ao Palácio de Alumínio, na Avenida Conde da Boa Vista, em janeiro de 1956, a comemorar ruidosamente o inesquecível título de Campeão do Cinqüentenário do meu glorioso Sport Club do Recife.

Nenhum comentário: