quarta-feira, 30 de junho de 2010

NECESSIDADE

Preciso de saber. Saber sentir o destino
Aceitar o escurecer do nada.
Escrever um verso frio; um hino
Na solidão da estrada.

Para a vida reforçarei o desatino
Da alma desamparada.
E no final do verso, assassino
A mente desvairada.

Preciso de sonhar. Preciso de você
Mulher minha delirante
Isso tudo antes de morrer

Vinde, corpo quente e palpitante
Corpo disposto a ser
Grandioso orgasmo do viver.



© Copyright by Rafael Rocha Neto, Recife, 30 de junho de 2010.

EPITÁFIOS

Da vida trago braços de espumas salgadas
Do mar e dos eflúvios doces dos rios
De meus sonhos de infância colhi pedras
Nada ficou de meus anseios de homem
A vida permanece úmida e fria
Sob os raios desse estranho sol permanente.

Na minha estrada colhi poeira
Marquei com meus pés a lama
Tantos pisaram comigo os caminhos
Nem mais lembro os rostos e as bocas
Sobraram no finito da caminhada
Nas profundezas de suas dimensões.

Minhas areias humanas fazem praias
E ancoradouro para os atuais amigos
E margens de grandes rios às mulheres
Essas loucas a me trazer vida noturna
Nos lençóis e nos quentes travesseiros
Umidificadas pelas gotas de suas chuvas.

O tempo está a erguer estátuas de pedra
Marcando momentos das elegias finais
Há um ancoradouro em horizonte novo
Vazio de barcos e ainda sem albor de sol.
O tempo está a causar medo a minha carne.
O tempo está a escrever tantos epitáfios.


© Copyright by Rafael Rocha Neto, Recife, 29 de junho de 2010.

terça-feira, 29 de junho de 2010

TROVÕES

O que se tem de fazer? O homem pensava. A noite do lado de fora do casebre estava esquisita. Lampejos desvairados de dor nas têmporas. A chuva fazia a lama entrar pelas frestas de madeira da casa. A barriga revirava com vários roucos de fome. A luz do candeeiro bruxuleava.

No canto a mulher tinha elevado a cama sobre vários tijolos para não ser alcançada pela lama. E dormia abraçada com a menina. Do outro lado, o menino enrodilhado entre as pernas da mãe. Mexeu-se. Puxou um lençol rasgado por cima. O corpinho de doze anos estremeceu vestido com a camisa do time de futebol do coração.

O que se tem de fazer? O homem olha ao redor. Coça a barba hirta. A fome não o faz pensar bem. Enfia a mão no bolso da camisa e de lá retira uma garrafa de cachaça. Bebe um gole. Fica mais quente. A dor nas têmporas aumenta e ele tem vontade de gritar. Morde os lábios até o sangue escorrer.

E por que é mais fácil isso? Ter uma arma e ter bala de chumbo no cilindro? Por que é tão fácil? Mais fácil ter isso do que um pão ou um pedaço de carne. Levanta-se. Vai até o fogão enferrujado. Uma panela. Abre. Só um resto de sopa de legumes. Enche uma caneca. Bebe. Que merda!

O que se tem de fazer? Um relâmpago traz um estrondo do trovão. A chuva aumenta. Ele pensa em dormir, mas a dor nas têmporas anda a abater seu sono. Olha a mulher na cama. Que fizemos? O que fiz? A cabeça da mulher utiliza uma bíblia como travesseiro. Ele fica irritado. Ah, que Deus de merda é esse que nos faz isso?

A dor nas têmporas aumenta. Ele começa a perder o entendimento de si. Olha para os lados. A luz bruxuleante do candeeiro faz o casebre parecer uma gruta de abrigar animais. A mulher gira o corpo e faz a bíblia cair na lama no chão. Que vá à merda! Quase que ele grita.

Faz outra dose de cachaça deslizar pela garganta. O que se tem de fazer? Sente que tem de fazer o óbvio. Nada existe para ir adiante. Nenhum caminho se abre com sol. Nenhum futuro. É tudo escuro e chuvoso. É tudo fome. É tudo sem constância. Do bolso da calça tira um pacote e põe na mesa.

O que se tem de fazer? Tudo que for preciso para sair deste espaço de merda, diz para si mesmo. Um revolver calibre 38 agora nas mãos. O cilindro com as seis balas. É tão fácil ter uma arma e é tão difícil ter um pão!... Vai até a cama. A mulher recebe o tiro nas têmporas. Depois mais dois tiros no menino e na menina.

Quando o relâmpago traz o poderoso trovão o tiro que ele dá em si mesmo é abafado pelo clamor da tempestade.



© Copyright by Rafael Rocha Neto, Recife, 29 de junho de 2010.

EPÍSTOLA AO MUNDO

Mais presente na terra do que o sonho mais irreal
Entre a razão e a paixão desses lugares faço parte
Das paisagens de cinza e luz observadas em todo dia
Nas barafundas das loucuras e na sede desumana
Deslizando na carne e entre pálpebras sonolentas

Ando...

Não sou poeta de cantar paixões românticas imortais
Mas a razão de mim não governa minha vida.
Se a minha poesia cansa os olhos de quem lê o livro
O leitor vá beber sua cicuta socrática apropriada
Para satisfazer sua ignorância ou ofuscar sua mente débil.

Ando...

Não pretendo agarrar-me a anjos nem a cruzes de cristos
A minha poesia não é adorável e não pretende sê-la.
Um Maiakovski de mim ou um produto vivo da terra
Assim prefiro. Assim serei. Assim pretende minha razão.
No obscuro clamor não ponho caramelos na canção.

Ando...

Estou caminhando na fase de uma luta de guerrilhas
Com armas traiçoeiras escondidas entre as vestes
Tenho uma pretensão de matar leitores e críticos
E de mandar à merda os filósofos teológicos
E fazer no poema o parto do assassino serial.

Ando...

Vejo a vida no passear flertando com minha carne magra
Belas fêmeas abrindo as pernas na tentação das sílfides
Homens hipócritas elogiando minhas atuais palavras
Sem nem saber a verdade do que falo e do que vivo
Cães imbecis a uivar suas coisas vãs ao acaso.

Ando...

Tal a palavra do Iessiênin dita quase sem a voz sonhar:
“Me agrada iluminar na escuridão
O outono sem folhas de vossas almas,
Me agrada quando as pedras dos insultos
Voam sobre mim, granizo vomitado pelo vento”.


Ando...

Vomito meus versos escritos pelos meus demônios
Não escrevo para harmonizar almas desvairadas
Minha estrada é longa e vazia e não vejo o horizonte
Tenho a mim como uma planta silvestre espinhenta
A solidão faz parte do último verso da estrada.

Ando...

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© Copyright by Rafael Rocha Neto, Recife, 29 de junho de 2010.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

IMORTALIDADE

Antes do abraço pesado da mãe-terra.
Antes da invasão dos vermes da argila.
A glória de meus versos eu reparto e verto
Para o conhecer imortal da alma viva.

Não, não fiques triste. Aceite a verdade:
Um dia esta minha face nunca mais verás.
Só na amplidão do papel far-se-á alarde
Do imortal que fico no negro dos sinais.

Da cabeça onde tirei os pensamentos
Só irão restar ossos finos e orifícios.
Mortos estarão os meus tormentos.
Vivos ficarão meus sonhos fictícios.

Por isso, venha a mim agora. Bebamos
A cerveja e fumemos o cigarro, necessários.
Sintamos as mulheres e juntos façamos
O ritual maciço aos novos itinerários.

E por que não? Tenhamos alguma serventia.
A vida é um sopro. A morte é eternidade.
O tempo de viver é só um curto dia.
O tempo de partir não vai marcar idade.

Bebamos! A vida é bela enquanto é bebida!
Chorar e rir! Beijar e ganhar abraços.
Escrever o poema é imortalizar a vida.
Fazer um verso é gerar um novo espaço.

Festeje a morte com a vida nesta rima
Pois ao partires nada irá restar daqui.
Uma outra gente poderá ser-te prima.
Jovens e velhos ler-te-ão e vão sorrir.


© Copyright by Rafael Rocha Neto, Recife, 24 de junho de 2010.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

TEMPOS IDOS

Deixando em sal as minhas águas da península
Tristeza do ter sido mundo em tempo exilado.
Como dando sabor às lagrimas do desterro
O meu outrora da vida ter-me desajustado.

A dor fluiu! E os dias ficaram inúteis e vazios.
Tal presença de glória tanto eu ousei sonhar
Cabelos brancos a emoldurar o belo crânio
A caminho de Caronte essas geleiras vão passar.

Lembro a voz na mesa: Eu não te reconheço!
Preso o pranto enregelou-se em pedra a dor
Marcante dor a invadir a espécie de mim.
Lembro a voz sorrindo a desprezar o amor.

Paixão interrompida. Dá-se e tira. Tudo a se acabar.
Mundo que expira. Vai-se para outros mares a flor.
Tal os versos mais infantes a sonhar desditas.
“Fonte não me leves, não me leves para o mar”.

Eis no tempo a fonte fria. Sorriso zombador.
A matar o esplendor maior daquela triste lira.
Antes de ser jogado ao mar o corpo frágil
Salvaram-no as areias e o perfume da ilha.

Braços amplos acolheram o poeta incendiado.
Deram-se mãos à paixão na jovem pressa da vida.
O amor fluiu venoso em novo corpo recriado
E renasceu na glória da ilusão imperecida.

Cabelos brancos emolduram o belo crânio.
Tais espessas geleiras no caminho de Caronte.
E a voz repete na vida: Não mais te conheço!
Não sei quem és! Nem imagino de qual lugar de onde...


© Copyright by Rafael Rocha Neto, Recife, 23 de junho de 2010.

ARRANCAR O RANCOR

Arrancar o rancor
Antes
Tenho que fazê-lo vida!
Aglutinar
Anseios assassinos
Matar...
Ferir...
Esganar...
Versos a tentar nascer.

Amaciar o rancor
Antes
Tenho que fazê-lo morte!
Cometer
Ações maledicentes
Rir...
Chorar...
Zombar...
Versos a tentar morrer.

Desprezar o rancor
Antes
Tenho que fazê-lo nada!
Desatinar
Canções de amor à vida
Amar...
Beijar...
Sonhar...
Versos de beijar mil bocas.

É hora de exilar o rancor!
Uma mesa de bar aguarda meu corpo!
Um gole gelado de cerveja
Amacia...
Aglutina...
Desatina...
Sai rancor!
Ficam versos e saudades
A voar na noite.


© Copyright by Rafael Rocha Neto, Recife, 23 de junho de 2010.

O MORTO

Tarde!

Mas cansado não estava. Abriu a porta da rua. Entrou. A sala às escuras. Tateou a parede. Luz.

Sentiu sede, mas antes tirou a camisa. Sentia calor. Vinha da sede o calor? Ou o calor dava sede? Riu de suas perguntas. Assim se faz o inicio do louco. Encheu um copo com água. O líquido desliza pela garganta. Melhora a secura. Umidifica.

Mas o sabor não sai. Tira toda a roupa. De cuecas ruma para o quarto. A mulher dorme quase nua. Mas sente o abafado do aposento. Odor de suor da fêmea. Mas isso não o excita, pois o sabor não sai.

Volta a sala e sente agora outro odor. Aquele deixado do outro lado da cidade. O do corpo de Marcela. Fecha os olhos. E assim sai voando, sentindo, cheirando... E o sabor volta, não sai. Fica.

Acende um cigarro e se esparrama na poltrona da sala. Olha o relógio. Quatro da matina.

Tarde!

Mas cansado não estava. Seus olhos fitam o teto. Sente de novo o cheiro deixado do outro lado da cidade. Marcela. Marcela. Marcela. E nela se envolve junto com a fumaça no cigarro e com o sabor da carne macia e com o odor da pele e dos cabelos.

Agora está excitado. Mas o calor da sala começa a abafar e a fazer o suor escorrer. Apaga o cigarro. Ruma para o quarto. A mulher dorme agora coberta pelo lençol branco. Deita-se ao lado.

O ventilador de parede faz um zum e zum extraordinário nos seus ouvidos. Tira a cueca. Está morto. Ri com o fato. Pega o morto. Solta o morto. Que coisa! Isso também faz o início do louco.

A mulher rola na cama. Um dos braços dela cai sobre sua barriga. A mão toca o morto. Ele fica teso. Está morto mesmo. Porra! Espera. Volta a escutar o zum zum do fazedor de vento. O morto é agarrado. Apertado. Porra! O morto acorda e ele volta do outro espaço.

Apenas um sonho!


© Copyright by Rafael Rocha Neto, Recife, 23 de junho de 2010.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

RECIFE - NA PASSAGEM DAS HORAS

Rafael Rocha – 8 de junho de 2010



Os automóveis passam rápido pelo asfalto da avenida e os bares vão se infestando de homens vazios. Na grande maioria de desempregados, filando algumas horas de lazer aos bolsos dos camaradas possuidores de meios para financiar seus vícios e suas solidões. As buzinas ressoam estridentes. Os canos de escapamento soltam gás carbônico. Os camelôs gritam suas mercadorias e todas elas são especiais e mais baratas que as do mais próximo concorrente. As prostitutas vendem o corpo, sem observar as precárias possibilidades de compra dos homens. Quando consigo uma concentração maior para ver/escutar o bulício da cidade, um ônibus acerta um automóvel e deixa atrás de si todo o tráfego da avenida estrangulado, seguindo-se buzinas, palavrões e gestos obscenos.

Fico estacionado na ponte Duarte Coelho a olhar o coração da cidade a pulsar na Avenida Guararapes. Poderia estar em outro lugar, no começo da Rua Nova a olhar a Avenida Dantas Barreto, pululando de gente, ou na Rua 1º de Março, ou na Avenida Conde da Boa Vista. A visão que se me depara é e será sempre a mesma. No Bar do Sargento, lá no Pátio de São Pedro, sorvo uma cerveja gelada de forma um tanto inconsciente. Vejo no Pátio um oficial militar quase a arrancar o braço de um pivete e a multidão, cercando-os cheia de sadismo, quase todos rindo com o feitiço da violência e outros nos gritos e gestos próprios manicomiais. O garoto, na única coisa a poder fazer, se contorce e chora.

Então consigo observar o quanto a cidade cresceu e se reduziu. Cresceu em pedra vertical, em ferros e pneus, em homens e mulheres transitórios e se reduziu ao horizontal da indiferença. Ainda existe a poesia do antigo, mas todos os cálculos se baseiam na intensidade do agora, pois o amanhã se manifesta como o tarde demais. Não existe salvação para esses pormenores. Os paliativos que possam ser usados para uma humanização completa, estão ao alcance das pessoas, mas essas esqueceram a educação comunitária, vítimas de um crescimento desordenado e sem infraestrutura, criando a realidade dentro da ótica mercantilista, própria aos vândalos.

Há muita coisa que se ver.

Na hora do rush os carros e os ônibus deslizam pelas avenidas, abrindo caminho para o sossego dos bairros e subúrbios e as pessoas andam pelas calçadas numa situação de ligeiros tristes sem comentários para o futuro. Sempre cada vez mais depressa, pois em qualquer esquina existe a possibilidade de um assalto. Sempre cada vez mais depressa para que não se possa enfrentar a herança da futura megalópole capitalista. A noite que começa ainda traz alguns boêmios à antiga para os bares da Rua da Roda, e as avenidas Guararapes e Dantas Barreto ficam coalhadas de filas de transeuntes em busca de seus ônibus suburbanos.

Há muita coisa para se ver. A pracinha da Independência deixou de ser apenas uma praça. Parece-se mais com um grande circo ambulante cheio de personagens felinianos. Tudo anda feio e sujo na esperança de que exista um possivelmente para clarear aos coisas feitas pelos homens. No entanto, as coisas não aparecem ver a luz no fim do túnel e a população continua afeita ao obscuro que obriga ao cultivo da depredação do próprio habitat.

Parece uma imagem surrealista, mas não é. É acima de tudo a realidade pobre de uma pequena metrópole em crescimento vertiginoso. Os camelôs apertam os transeuntes uns contra os outros, na Praça do Carmo, reprimindo a liberdade de ir e vir. Os vendedores de frutas espalham suas preciosidades pelos calçadões da Avenida Dantas Barreto. Mendigos esfarrapados interpelam as pessoas nas filas dos ônibus, nos bares e nas ruas revitalizadas. Mulheres em andrajos amamentam os filhos e os apresentam aos olhos dos passantes em busca da caridade alheia. Nos semáforos. Em frente das grandes lojas. Tudo uma verdadeira Babel, uma feira medieval, um mercado persa. Pense-se como achar melhor.

Todos podem pensar como achar que seja bem. A cidade é um ser abstrato que vive dos estímulos dos homens. A vida escorre nas ruas como o sangue pelas nossas artérias. As pessoas mais velhas lembram com saudosismo a antiga amplitude de suas paisagens. Até chegam a se perguntar, como os jovens de hoje, os idosos dos próximos 50 anos, conseguirão descrever para seus netos a poesia e o lirismo de sua época. O Recife de antanho era a calmaria e a boemia justapostas aos contrastes provincianos da alma nordestina. O Recife, agora, é um cartão postal de vandalismo, e da indiferença dos seus cidadãos.

Na passagem das horas, as ruas vão se esvaziando. Quase todas as pessoas começam o movimento de partida. Querendo vê-las eu fico no mesmo lugar de sempre. Qualquer um desses bares. Qualquer uma dessas pontes. É muito interessante observar uma cidade adormecer. Um adormecimento de solidão momentânea, pois dentro de algumas horas o novo dia irá transformá-la freneticamente. Existem os que partem para o aconchego de suas casas. Existem os que ficam curtindo a noite e sentindo a transformação das horas da cidade. O Rio Capibaribe é o único que não adormece. Sempre a postos como vigilante eterno de todas suas margens.

Tempo para ver, tempo para sentir. Tempo para lembrar e tempo para perguntar a si próprio como essa cidade estará retratada nos próximos 50 anos. Não estarei vivo para ver, sentir todas essas horas, todos esses dias que vão passar. Saio caminhando pelas ruas desertas dentro da escuridão da noite. Aqui e ali algum notívago desponta, fazendo a declinação das sombras entre as paredes dos novos edifícios. Pela Avenida Conde da Boa Vista quero alcançar a Avenida Guararapes e partir para o impacto da solidão do Cais de Santa Rita. Revejo em transe hipnótico os grandes barcos atracando no cais, hoje um enorme estacionamento de ônibus, e lá longe, mas tão perto da minha visão de criança, a ponte Giratória se abrindo e dando passagem a um novo barco a vela.

Na passagem das horas escoa-se o tempo. Pensar na cidade como um ser humano é dar um sentido de vida condizente com sua necessidade de juventude. Sinto que o Recife nunca deveria envelhecer. Sinto que suas ruas, artérias do seu esqueleto de ferro e aço e asfalto e seres humanos, deveriam sempre ficar impregnadas de uma poesia própria. Cidade de um sentimento nivelado aos anseios de todos seus habitantes.

Na passagem das horas a vida continua. Continua para um extremo enigmático. Não podemos saber onde se localiza o ponto de chegada. Se fosse possível solicitar aos deuses defensores dessa cidade edificada sobre os mangues e sobre os areais litorâneos de Pernambuco, assim seja: no encontro das águas dos rios que a cortam, uma gênese de fé e de esperança. Um renascimento humanitário para as gerações futuras. A História não estaciona. Novos tempos trarão novas paisagens, outras novas pessoas e novas memórias para a sua poesia. Quando isso acontecer, o rio, vigilante da terra, poderá cantar a canção que guarda no seu seio desde tempos imemoriais e nós poderemos fazer a evocação da cidade de um modo muito mais eloqüente que o do poeta.

Jamais como o Recife que possamos aprender a amar depois. E ainda menos como o Recife da nossa infância. Sim, como o Recife transbordante de emoções. Como o Recife cheio de raízes íntimas às nossas entranhas. Como o Recife de todos os homens, de todas as mulheres, de todos os poetas. O Recife uniforme. O Recife em trâmites de esperança. O Recife que hoje se constrói para o futuro em extrema pobreza, para se assemelhar aos olhos dos próximos filhos como sempre se compraz: em feitio de água, de sol e de pendores místicos.

terça-feira, 1 de junho de 2010

PRIMEIRO PARTO POÉTICO - 1979



MEIO A MEIO - Meu primeiro livro de poesias, nasceu após muita luta e quando ainda cursava Jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco. O livro é fruto de uma época de luta contra a ditadura e contra os preconceitos e discriminações. Foi lançado no mes de setembro de 2009, na Casa da Cultura do Recife e bem recebido pela crítica. Produção independente, como acontecia na época. O autor pagava do próprio bolso a confecção de suas obras. Abaixo insiro o poema que dá titulo ao livro e mais dois.

MEIO A MEIO

Aqui a poesia
Vem pela metade
Abre-se para o espaço
Reafirma-se mais.

Reafirma-se mais
Ouve a voz do tempo
Angústias e tormentos
Dos poetas que sofrem.

Os poetas sofrem
Porém são mais felizes
Arremessam-se viris
Em todas as fronteiras

Nas fronteiras todas
Baionetas caladas
Atravessam os poetas
Sem terem convites

Eles reafirmam-se mais
Abrem-se para o espaço
Juntam-se à outra metade:
A poesia, aqui.
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CONJUGAÇÃO DO PRESENTE

Retrato vitalício de angústias
Arrendamento de artérias sanguíneas
Os canibais povoam as ilhas isoladas
Dos neutros homens.

Prolongamento de túneis petrificados.
Rios de poeira comprimindo as pálpebras.
Noites de intensas lágrimas e sangue, imoladas
Nos neutros homens.

Comboios de desejos em condensações.
Trilhos de ferro negro onde geme-se dormindo.
Casas caiadas de branco e habitantes cinzentos abraçados
Aos neutros homens.

Vestimentas de aço e mãos que estrangulam flores.
Manadas de javalis selvagens, ferozes e famintos.
Estão sendo sugadas as artérias dos homens neutros
Em transes infinitos.
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ÀS ESTÁTUAS VIVAS

Os homens estão perdendo as auroras
Na noite negra que desaba sobre o mundo.

Junto a que ideal anda a palavra de ordem
Para essa dor que rola aos nossos pés?

Palácios são erguidos aos caudilhos da Terra
E o construtor de estátuas perde-se no crepúsculo.

As faces dos homens andam feito pedras.
Por que eles estão distantes?
Por que eles estão tão frios?

De hora à outra as auroras adormecem
E uma noite negra desaba sobre os homens.

Apenas uma ansiedade envolve sua história
Num surto de gritos, gemidos e belicismos.

Mas, mesmo com os olhos buscando o orvalho,
Os homens deixam-se a vagar no frio do inverno.

E palácios são erguidos...
Palácios são erguidos aos caudilhos da Terra!
E os lapidadores da pedra dormem sob a lama!

Por que eles não acordam?
Por que são tão frios como estátuas?

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Versos escritos entre os anos de 1975 e 1979