segunda-feira, 29 de novembro de 2010

FINAL

Não ande dispersa por este mundo.
Viva louca a paixão todo segundo.
Saiba a vida insana que vais perder.

Em algum momento o tempo inseguro
Vai trazer o chamado fim do tempo futuro
E tantos de tua gente amada irão sofrer.

Viva cada segundo ainda que morrendo.
Viva cada milésimo mesmo maldizendo
Todos os belos pedaços teus que irás perder.

Não terás tempo de chorar a tua partida.
Nem de sentir o último sopro de vida
Ao chegar a noite e o dia desaparecer.

A PROFECIA CERTEIRA DE UM GRANDE POETA CEARENSE

A classe que se diz elite no Brasil nunca se preocupou em fazer do País um lugar melhor para se viver. Isso vem desde os tempos do Descobrimento. Essa classe deseja apenas subir degraus tanto por vaidade, presunção, despeito, ou para explorar e vender a pátria por baixo preço. E busca deturpar com suas ações fascistas quem está abaixo dela e que consegue melhorar de vida através da luta e do estudo.

Vale lembrar aqui, camaradas, que ocorreram mudanças drásticas no País nos últimos oito anos. Para melhor, claro. E essas mudanças vieram através de um pernambucano bóia-fria que conquistou a Presidência da República através do voto popular. E neste pedaço também podemos dizer que nunca antes na história deste país (beleza de frase para ser repetida sempre) ocorreu uma metáfora tão sensacional de subversão política. O torneiro-mecânico Luiz Inácio Lula da Silva entrou na história brasileira com determinação e resgatou socialmente os menos favorecidos.

Ele podia, realmente, ceder à tentação de buscar um terceiro mandato, mas, dono de um raro desprendimento do poder, recusou. O povo o queria, sim, bastava um aceno de sua parte nesse sentido que ele seria mantido no poder, tanto que as eleições recém-terminadas demonstraram plebiscitariamente o quanto esse povo sabe agradecer e dar sequência à verdade e jamais prosseguimento ao ódio. Elegeu Dilma Rousseff, a candidata do torneiro-mecânico. Uma ex-guerrilheira, uma lutadora que foi torturada nos porões da ditadura militar de reles memória, e que no dia 1º de janeiro de 2011 estará recebendo dos chefes militares das Três Armas as continências e os cumprimentos de praxe.

Camaradas, o Brasil pode agora falar através de sua população e assinalar os fatos históricos como Antes de Lula e Depois de Lula. Mas quem fará isso será a sua população politizada e não a população fascista que resolveu colocar a culpa da perda da eleição do seu candidato de ultra-direita nos nordestinos, esquecendo-se que o Brasil começou no Nordeste e que o braço nordestino construiu e incrementou o crescimento das grandes capitais do País.

É lamentável, camaradas, que a cultura do ódio e do preconceito ainda continue tão arraigada no Sul e Sudeste contra a raça mais lutadora e mais sofrida da pátria. Essa cultura do ódio incentivada pelos partidos da direita e pela mídia golpista tem de acabar. E para isso a presidenta eleita terá de usar a força popular recebida nas urnas para dar um basta a essa mentalidade retrógada.

Camaradas, sabemos que existem dois Brasis. E cada um desse Brasil tem uma fisionomia particular como bem profetizou o poeta cearense Patativa do Assaré, quando salientou:
“Tudo que procuro acho. / Eu pude vê neste crima. / Que tem o Brasi de Baxo / E tem o Brasi de Cima / Brasi de Baxo coitado! / É um pobre abandonado; / O de Cima tem cartaz, / Um do outro é deferente / Brasi de Cima é pra frente / Brasi de Baxo é pra trás”.

Porém, camaradas, hoje a história é outra. O Brasil de Baixo está na crista da onda, seguindo os trâmites desenvolvimentistas elaborados por um governo ligado à alma do povo. Governo que deverá ter continuidade nas mãos da primeira mulher presidenta da pátria. E que deverá também aceitar o cumprimento da profecia do poeta: “Não se afrija, nem se afobe, / O que com o tempo sobe, / O tempo mesmo derruba: / Tarvez ainda aconteça / Que o Brasi de Cima desça / E o Brasi de Baxo suba.”

Aconteceu, camaradas! E está acontecendo, camaradas! E o Brasil de Baixo vai subir ainda mais e derrubar essa elite gananciosa e presunçosa do tal Brasil de Cima. Nunca antes na história deste país uma profecia está dando tão certo.

NOTURNO DE TREVAS

Nas conversas de dias para noites
Com o outro espaço aéreo de mim
As alucinações chegam pouco a pouco
Trazendo versos ásperos e loucos
Viajando em dramas e saudades
A escutar o som vazio do silêncio.

As madrugadas fazem de mim um tempo
Repleto do vácuo próprio de um nada
As tristezas se abatem sobre a vida
Com discussões infinitas do ser e não ser
Caminhando nas veredas desconhecidas
Preparando-se para mergulhar no abismo.

O que fazer? O que tentar reconstruir?
As vidas passageiras do meu tempo
Deixaram de estar. Nada mais são.
Agora simplesmente esboços de vazios.
Nem sei se ainda têm ossos inteiros
Nas sepulturas onde as carnes sumiram.

Nos pesadelos das noites para os dias
O medo de partir domina todo o sono
Estremeço como se já estivesse frio
E tento buscar a solução do imortal.
Fica difícil acreditar no voo final da ave.
Fica difícil aceitar preparação a este voo.

TERREMOTO

Hoje aconteceu um grande terremoto
Para abalar os alicerces de meu corpo.

Foi duro sentir sozinho a dor da angústia.

A tarde estava quente e tudo ficou abalado.
Descobri meus sentimentos enviesados
E sonhos a se esmagar na solidão única.

Ninguém em casa sentiu meus abalos sísmicos
Todos estavam vivos nos seus alicerces pessoais.

Entre um cigarro e um gole de cerveja
Os alicerces do meu corpo estremeceram
E resolvi dormir para melhor saber dos escombros
Deixados ao relento de minha carne.

Muita coisa ficou soterrada.
Até mesmo uns versos sentimentais
Escritos na outra alvorada.

OUSADIA

Peço: não esqueças meu abraço
Apesar do meu cansaço
Tentar isso ocultar.

Peço: perdoe esta ousadia
De fazer da noite um dia
Para a gente namorar.

Aguardo o beijo prometido
Molhado e colorido
Igual a como és.

E fantasio tua imagem
No meu deserto a miragem
Água pura aos meus pés.

Quero o rubor de tua boca
Prazer e carícia louca
Em meus lábios dementes

Quero a ânsia deste amor
E ao teu corpo nu propor
Saciar desejos quentes.

SEMANA LONGA

O Recife canta a noite vagabunda
Carne feminina em versos errantes
Na aurora dos dias até a concórdia
Aos arrecifes marcando distantes
As ondas atlânticas em boa viagem
Molhando as areias e corpos vadios
Mulheres despidas de amor e paisagem
Crianças sonhando castelos de areia
Olhando o horizonte o poeta semeia
A profundeza do sol que permeia
As luzes mortiças do meio da tarde
O fantástico domingo nos arde.

E o sonho completo está lá dormindo
Nos ventres das belas fêmeas da terra
Na lua a brilhar nas águas dos rios
Onde os desvarios de almas encerram
Percalços maiores de dias perdidos
Nascidos em camas e berços vulgares
Por onde as chamas dos outros fulgores
Olhavam o poente de outros lugares
Trazendo paixão no meio das dores
Das solidões marcando momentos
Que de tão piores são sentimentos
Na segunda-feira dos mil incrementos.

E no centro da mais velha rua formosa
Entrando nos toques do maracatu
A bela morena se vem dadivosa
Noitejar o dia no cruzeiro do sul.
Como se a vida se lhe fosse um delito
A renascer morto em pleno carnaval
O homem abraça a carne e seu grito
Reflete o escorrer do germe carnal.
O beijo na boca... Ah, louco conflito!
Germina a paixão em amor casual
No odor maresia das praias de Olinda
É só terça-feira. Um dia banal!

Anda o caminheiro de horas fugazes
Buscando o liberto olhar varonil
Do espaço neutro das horas verazes
De coisas rapaces ao seu ser fugidio.
O frevo constante martelando a pele
Traz o guerrilheiro mais que sombrio
Na liberdade de pernas e braços
A tentar abraços no leito dos rios.
E quando o corpo aceita o mormaço
É nesse cansaço acalmado seu frio
No espaço dos brilhos do maior abraço
Da quarta-feira: um dia sombrio!

E disse um poeta ao falar do azul
De tantos verdes a terra estremece
Se do amarelo a pátria envaidece
Nos grandes leões a terra enriquece.
Homens, mulheres, crianças, idosos.
Brancos e negros, mulatos, cafuzos
Lá nos Guararapes deram-se fortes
As mãos da ideia contra os obtusos
Forjados amantes de antigos grilhões
Inimigos dos pernambucos rincões
E da raça guerreira da rua da praia
Na quinta-feira de um sol dissoluto.

O Recife canta a noite vagabunda
Nos bares noturnais das sextas-feiras.
Roubados corpos e almas oriundas
Desde o 1817 das rameiras.
Do buraco do mar nascem gemidos
Do Cabugá, do Caneca e das quimeras.
O Recife dança a valsa vagabunda
Nas noites longas dessas sextas-feiras
Homens, mulheres e agitações noturnas
Vindas das mais antigas roubalheiras
Das vestes papais e dos sacripantas
El-reis, rainhas e padres e suas freiras.

Nasce o sábado. Dia de luzes certas
Onde o poeta declamou em voz correta:
Impossível fugir dessa manhã.
Hoje é sábado. Domingo é amanhã.
Onde ninguém se gosta de se ter.
Olhando o horizonte o cantador semeia
A profundeza do sol em si a nascer
As luzes mortiças do meio dessa teia:
Uma cerveja! Uma fêmea o enleia!
E crianças inda erguem castelos de areia...
Nunca é tarde para se buscar a liberdade.
A livretude deste sábado nos arde.

INSTANTES

Marco em mim 61 anos. Estou vivo.
Não sinto cansaço agora.
Mesmo que todos os instantes dos outros
Estejam a me parecer cansativos
Nas suas intermitências e repetições.
Sempre vejo sentido para tudo que faço.
E mais para os algos que não posso fazer.
Acho interessante ver os tantos da mesma idade
A olhar só o passado, como se vendo
Coisas antigas ainda para construir.

Eu pretendo coisas novas.
Não estou resignado a nada.
Olho meu corpo e sinto necessidades
Dessas de partilhamento com a vida
Mas também olho para os lados
E vejo as mentiras destiladas do cotidiano
Vejo terras de mulheres e homens odiosos
Não todos, claro, mas uma massa
A insultar meu tempo progressista e tolerante.

Quando converso com o amigo na mesa do bar
Saio saltitante a falar de minhas proezas
E a escutar as proezas que ele conta.
Ambição desregrada essa de dois poetas:
Cheios de certezas absolutas.
Cheios de incertezas reais.
Nós ambos, sabemos que resta muito pouco.
Mas nada tememos disso.
Ainda...

Marco meus 61 anos na certeza
Do quanto estou vivo e completo em mim.

PALAVRAS VAZIAS

Se não dás respostas aos meus transportes
Lúdicos de amor, paixões e mil sortes
Esqueça as travessias que eu já fiz.

Toda essa loucura é uma só resposta:
Dizes aos sonhos que não te importa
Sentir as coisas a me deixar feliz.

Deixa esse amor tornar-se findo
Ainda que nos tenha sido lindo
Habitante de espaços irreais.

Deixa o tempo matar o sentimento.
Melhor assim! Não deixe o tormento
Ferir meu peito por não querer-me mais.

Inquietante é saber viva a solidão
Na imensa cama e cá no meu coração
Guardar tanto os mais cruéis enredos.

Se as respostas já me nascem perdidas
Não adianta perseguir tuas mil vidas
E nem mesmo esconder os teus segredos.

ESQUECIMENTO

Certamente nunca irei te esquecer:
Tua boca rubra, teu olhar, teu jeito doce.
O beijo perdido em vão dentro da noite
Quando o adeus pediu que eu me fosse...
Nunca irei realmente te esquecer!

Sim, escondidos lá no meu inconsciente
O nome, o rosto, e a pele macia
Quase foram apagados pelo adeus demente
Quando soube que o amor se esvanecia...
Dentro de mim quase te esqueci!

Não posso jurar isso como uma verdade.
Não serei eu a escrever o verso da saudade
Quando nem sei fingir se realmente te esqueci.
Sim, porque às vezes bate em mim essa amargura
Vontade de te ver e de saber se és feliz...

Não! Não posso esquecer o que vivemos
Borracha alguma apaga a vida escrita.
Quem nos viu um dia sabe o que sofremos
Em nossas duas mais que loucas vidas.
Nunca iremos nos esquecer!

ROUPA DA SOLIDÃO

A dor vestiu a roupa da minha solidão.

Descobri a consciência dos relógios
No silêncio do meu corpo nu.
Contemplando as ausências
De todas as pessoas que amo.

Ao tentar erguer-me da solidão maciça
Entendi o sentido do verbo ausentar:
Conjugando passado, presente e futuro.

Descobri o quanto sei pouco dos outros
Ainda sabendo um tanto de mim
Dormindo na solidão do quarto escuro
Sentindo a persistência dos relógios.

A solidão vestiu-se toda de minha vida.

Estou sendo ignorado como gente
Na epiderme a cantar minha dor suada
Observo as pessoas mais amadas
A se desligar de minhas metáforas.

Olhando as paredes da sala de estar
E todas as ausências de retratos
Passado e presente descobri fúnebres.

Está ficando mais difícil ser e viver
Os relógios marcam minutos e segundos
Construindo para sempre as ausências.

DOIS POEMAS DO SÉCULO PASSADO

Poemas inseridos no meu livro Meio a Meio publicado no ano de 1979
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PRELÚDIO

É meia-noite e estão tantos ao meu redor.
Muitos riem e esvaziam os copos.
Tratam de frivolidades
E não vale a pena falar do tempo.

Eu fumo meu cigarro.
Eu olho para todos.
Espero...
Todos são provisórios
E em todos não haverá indestrutibilidade.

É meia-noite...
Ah, como acho amarga essa madrugada depressiva!
Saudades de coisas nunca feitas noutros dias.
Angústia de ter sido trêmulo no perigo.
Áspero na quietude do vento.

A verdade tentei enclausurar nas mãos
Para amigar-me com os homens.
Infelizmente, a fome andava nas cercanias.
O mundo estava desordenado.
E assim que passou o tempo
Eu pereci. Nós perecemos
E não escapamos do poder dos patrões.

Eu podia pouco com isso.
Eu preferia não ser eu, penso que preferia.
Tanto porque escolhi a não-violência,
A justiça, a alegria, o sol, a paciência...
Mas era pequeno o meu limite.
E quase tudo punha-se tão longe...
Longe dos nossos pés desesperados.
E perto de nós
Só a revolta, os carrascos e a fome.

Desculpem-me vocês:
Eu não tive forças.
Prepararam errado o caminho da nossa realidade
E eu não pude ser o outro que tantos queriam.
Ainda quero que os objetivos pequenos continuem na penumbra
E que todos esqueçam essas futilidades.
Eu quero todos rindo e esvaziando os copos
Não vale mesmo a pena falar do tempo sem sol...

É mais de meia-noite...
Fumando eu espero...
Não adianta falar das nossas fraquezas
Se o governo do mundo dorme com assassinos.
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NOITE COMO ASSUNTO

Não!
Não sejam necessárias as reminiscências.
Minhas noites sempre têm mais luzes.
Maiores multidões de segredos.
Muitas e imensas solidões.

Para início de assunto, eis as estrelas!
Tão separadas umas das outras!
Dá pena vê-las!
Oh, mensageiras de sinais ignorados do cosmo infinito!

Não! Recordações passadas não são necessárias
Para construir um poema para a noite/hoje
Com um certo tempero da noite/amanhã.
Faço-o com minhas idéias, simplesmente!

A noite tem mais luzes e mais abrigos.
Recantos onde todos curtem sorrisos e tristezas.
Possui feminilidade e perfumes.
Bares abertos.
Ouvidos atentos para milhões de lábios.

A noite tem próprios refúgios:
Locais onde podemos argumentar sem medo.
Ruas desertas para ouvir/curtir a madrugada.
Vias onde caminhamos ao acaso
Com e sem possibilidade de retorno.

Há o bas-fond:
Desaguadouro de mágoas em amplos ventres.
E, ainda, os botecos das ruas estreitas
(fétidos de fezes e urina)
Com seus imensos braços abertos.

Cadeiras, mesas, copos, garrafas.
Refrões claros e escuros.
Muitas mãos gesticulando.
Outras compassadas em eterna espera.
Toda uma completa vivência da noite/hoje
Nalguma batucada vibrátil,
Compasso de algum beijo,
No tilintar dos copos em elevação ritual.

Existem despedidas provisórias.
Existem despedidas sem nexo.
Existem despedidas amargas e eternas.

E todos parecem numa espera insolúvel por algum sol...

TROVÕES

O que se tem de fazer? O homem pensava. A noite do lado de fora do casebre estava esquisita. Lampejos desvairados de dor nas têmporas. A chuva fazia a lama entrar pelas frestas de madeira da casa. A barriga revirava com vários roucos de fome. A luz do candeeiro bruxuleava.

No canto a mulher tinha elevado a cama sobre vários tijolos para não ser alcançada pela lama. E dormia abraçada com a menina. Do outro lado, o menino enrodilhado entre as pernas da mãe. Mexeu-se. Puxou um lençol rasgado por cima. O corpinho de doze anos estremeceu vestido com a camisa do time de futebol do coração.

O que se tem de fazer? O homem olha ao redor. Coça a barba hirta. A fome não o faz pensar bem. Enfia a mão no bolso da camisa e de lá retira uma garrafa de cachaça. Bebe um gole. Fica mais quente. A dor nas têmporas aumenta e ele tem vontade de gritar. Morde os lábios até o sangue escorrer.

E por que é mais fácil isso? Ter uma arma e ter bala de chumbo no cilindro? Por que é tão fácil? Mais fácil ter isso do que um pão ou um pedaço de carne. Levanta-se. Vai até o fogão enferrujado. Uma panela. Abre. Só um resto de sopa de legumes. Enche uma caneca. Bebe. Que merda!

O que se tem de fazer? Um relâmpago traz um estrondo do trovão. A chuva aumenta. Ele pensa em dormir, mas a dor nas têmporas anda a abater seu sono. Olha a mulher na cama. Que fizemos? O que fiz? A cabeça da mulher utiliza uma bíblia como travesseiro. Ele fica irritado. Ah, que Deus de merda é esse que nos faz isso?

A dor nas têmporas aumenta. Ele começa a perder o entendimento de si. Olha para os lados. A luz bruxuleante do candeeiro faz o casebre parecer uma gruta de abrigar animais. A mulher gira o corpo e faz a bíblia cair na lama no chão. Que vá à merda! Quase que ele grita.

Faz outra dose de cachaça deslizar pela garganta. O que se tem de fazer? Sente que tem de fazer o óbvio. Nada existe para ir adiante. Nenhum caminho se abre com sol. Nenhum futuro. É tudo escuro e chuvoso. É tudo fome. É tudo sem constância. Do bolso da calça tira um pacote e põe na mesa.

O que se tem de fazer? Tudo que for preciso para sair deste espaço de merda, diz para si mesmo. Um revolver calibre 38 agora nas mãos. O cilindro com as seis balas. É tão fácil ter uma arma e é tão difícil ter um pão!... Vai até a cama. A mulher recebe o tiro nas têmporas. Depois mais dois tiros no menino e na menina.

Quando o relâmpago traz o poderoso trovão o tiro que ele dá em si mesmo é abafado pelo clamor da tempestade.

AMOR AO PRÓXIMO

Uma missa. O padre fazia o sermão da noite de domingo. O tema era simples e falava da necessidade de se amar ao próximo. Amar sem olhar a quem. Num canto recuado da pequena igreja Quitéria escutava. Ao seu lado via-se entreaberta a porta que dava do templo para a sacristia e dessa para a casa paroquial.

Todos os fiéis escutavam em silêncio a peroração. Ela parecia agir nos seus inconscientes coletivos. No outro lado, um pequeno coro de jovens esperava o momento de entoar os cânticos sacros.

Depois do sermão, deu-se continuidade à missa. Nesse instante Quitéria, como sempre fazia, começou a coletar os dízimos dos fiéis. Terminando o trabalho retornou para seu lugar, ajoelhou-se, benzeu-se e após prolongado suspiro encaminhou o corpo para a sacristia. Lá fez a contagem do dinheiro e colocou o apurado sobre a mesa de trabalho do padre. Depois saiu do local.

O fim da missa marcou também o fim da reflexão inconsciente coletiva e sua ligação direta com o amemos ao próximo como a nós mesmos. “Seu” Serapião, o dono do supermercado, saiu da igreja empurrando os demais e ignorando o pedido de esmola de um mendigo. Silvinha e Edivane deram-se as mãos e sorriram uma para a outra. A primeira sussurra no ouvido da segunda que está muito disposta nessa noite domingueira e que ambas podem seguir a máxima de se amar uma a outra.

“Dona” Margarida procura com os olhos o marido de “dona” Carmen e quando os olhos dos dois se encontram ela sabe que ele a irá visitar ainda naquela noite e satisfazer o seu amor ao próximo. Pedro e Letícia passam os braços em torno de suas cinturas e saem em busca de algum lugar penumbroso próximo da igreja, onde se abraçam e começam a se acariciar sem nenhuma sutileza.

São exatamente 20 horas. As ruas do bairro de Areias começam a se esvaziar perto da igreja. Dois bares abertos atraem alguns grupos de jovens, entre moças e rapazes, ao som de um forró pé-de-serra. Outros casais, desligados dos acontecimentos do mundo encaminham os corpos para as poltronas de casa, ligam a TV e esquecem a vida.

Na casa paroquial, o padre Clemente, depois de guardar o apurado dos dízimos dominicais, toma banho, e totalmente nu dirige-se ao quarto, onde, na cama perfumada e nua ela se acha à sua espera.

O padre apaga a luz. Com o abraço do homem e o enovelar de corpo contra corpo, escutam-se apenas os gemidos de prazer de Quitéria dentro da noite.

NO CAMINHO DOS GUARDIÕES DE PEDRA


Deixei os amigos no bar perto de meia-noite. Tinha de pegar logo o ônibus bacurau para não ficar “vadiando” dentro do espaço noturno e vazio da cidade. O centro do Recife estava praticamente sem movimento. Alguns notívagos iam e vinham apressados para alcançar os últimos ônibus em caminho de seus bairros. Mulheres da vida passavam, para lá e para cá, tentando, com seus atributos, fisgar algum macho recalcitrante de voltar para casa, mas quase nada acontecia. Perto de alcançar a Avenida Dantas Barreto, vi o meu ônibus zarpando. O palavrão saiu sonoro, curto e grosso. Porra!

E agora? Sem dinheiro para um táxi resta ficar na rua e esperar o nascer do dia. Retornei até o bar do Gordo na Rua da Roda com a esperança de ainda achar alguns dos amigos da farra. Ninguém! Os poucos boêmios ali existentes estavam quase todos bêbados, alguns a papear com as putas remanescentes na área. Quem sabe a regatear preços por umas horas de paixão?

Saindo da Rua da Roda peguei a Avenida Guararapes. Estava um tanto na escuridão. Mas, em frente ao que era antes o Bar Savoy, um homem de idade indefinida apanhava com cuidado livros e revistas pelo chão e os colocava em um saco de lona. Era um sebo pessoal e rudimentar. Estava a recolher os livros. Olhou para mim. “Movimento péssimo”, disse. “Ninguém gosta mais de ler”. Pus meus olhos em um livro de versos que estava em suas mãos. Capa envelhecida pelo tempo. “Gosta de poesia?”, perguntou, estendendo-me o livro.

“Tempo da Busca?”, perguntei. “Quem é o autor?” Mas o dono de tantos livros tinha sumido entre o espaço de duas colunas do calçadão da Guararapes e estava um pouco distante, escondido, a urinar. “O rapaz parece que perdeu o último ônibus, né? Fique com esse livro para passar a noite”. Disse isso e sem mais nada puxou a lona, onde guardara os livros restantes, dobrou com a maior rapidez, jogou nas costas e saiu andando apressadamente para os lados do bairro da Boa Vista. “Não durma pra não roubarem sua vida, moço” disse, quase gritando, sumindo na calada da noite.

Saí a caminhar com o pequeno livro preso embaixo do sovaco esquerdo para poder acender um cigarro. A cidade agora estava praticamente morta. Ainda com a cabeça “cheia” das cervejas que bebera nem prestei atenção nisso. Voltei a segurar o livro com a mão direita e tentei ler o nome do autor na capa. Não tinha. Só o titulo aparecia. “Bom, ao menos tenho algo para passar o tempo. Vamos ver se presta”, refleti.

Sentei-me em um banco da praça da Independência, logo em frente à igreja matriz de Santo Antônio e comecei a folhear o exemplar. A página que devia conter o nome do autor não existia, logo a seguir vinha a página com o titulo Tempo de Busca. “Bom, minha vida está realmente nesse estilo bisonho de buscar o tudo e ganhar o nada. Vamos ler”. Na fraca luz noturna a iluminar a praça forcei a visão (“eu quase te busquei entre os bambus / para o encontro campestre de janeiro / porém, arisca que és, logo supus / que há muito já compunhas fevereiro”).

O texto alcançou fundo meu espírito (“dispersei-me na curva como a luz / do sol que agora estanca-se no outeiro / e assim também, meu sonho se reduz / de encontro ao obstáculo primeiro”), mas o cansaço foi mais forte. A luz fraca da rua não ajudava em nada e assim meu corpo arriou para o lado e eu deitei-me no grande pilar que cercava o jardim da praça. Adormeci.

O frio da madrugada pegou meu corpo em desespero. Acordei apavorado. Olhei para todos os lados. “Porra! Perdi o ônibus!” lamentei em voz alta. Uma figura grande ao meu lado, bateu em meus ombros. Olhei o enorme homem de chapéu panamá ali sentado a pôr o dedo indicador na boca pedindo silêncio. Tentei falar, mas sua enorme mão tapou minha boca. O medo de estar sofrendo um assalto tomou conta de mim, mas olhando ao redor vi alguns homens sentados em volta de uma mesa, bebendo e escutando alguém mais jovem falar.

- Vamos ter calma que ela pode aparecer.

De repente todos os olhos pousaram em mim

- Olhem, o rapaz do livro acordou. Seja bem-vindo, moço. Parece que você perdeu o transporte da noite, não foi?

Eram seis homens. Na mesa, cigarros, copos cheios e outros vazios, uma garrafa térmica com café, uma de conhaque Dreher com o líquido pela metade e outra sem rótulo cheia de um liquido verde(??). Todos viram onde eu estava pondo os olhos. O grandalhão de chapéu berrou numa voz tonitruante a quebrar o silêncio da madrugada:

- Quer tomar uma com a gente? Fica à vontade, rapaz!

O mais calmo, parecia mesmo aquele cujo olhar estava perdido no vazio. Foi dele a atitude de encher um pequeno copo com o líquido verde(?) e me oferecer, dizendo:

- Serve para brigar com o frio. Beba!

Derrubei de um só trago a bebida e senti o estômago pegar fogo. Os homens riram. Pus-me a tossir, o que motivou um tremendo tapa nas costas dada pelo grandalhão de chapéu. Quase que meu corpo se estatela no chão.

Passado o acesso de tosse voltei a olhar para os seis, mas eles estavam como se sussurrando uns a outros. Escutei o mais moço falar:

- Não são todos que podem vir. Você sabe disso, Mauro. Os espíritos das pedras de alguns estão em espaços outros, mais distantes. Seria bom que Clarice viesse, bem como os outros... O Solano, principalmente. O Antônio... Com esse temos coisa para discutir.

- Sei disso, Carlos – observou o homem chamado Mauro – Nós prendemos nossos átomos nas pedras desta cidade. Eles não.

O homem de chapéu panamá, porém, não estava satisfeito.

- Vocês falam do Maria. Eu queria mesmo era discutir um assunto com o Trindade...

- Essa história você já discutiu conosco outro dia, Ascenso.

- Podíamos fazer uma corrente mental e trazer o homem aqui. Não me conformo com aquele poema do trem. Apenas um de nós devia ter um poema falando de trem. Eu...

- Ora, Ascenso! Poetas são livres de pensamento e de temas. Não se pode prender um tema em um só poeta.

O grandalhão de chapéu panamá olhou para quem tinha falado e redargüiu:

- Meu caro Manuel, isso é porque você não coloca ponto, vírgula nem reticência no que escreve. Eu coloco aspas nisso. Mantenho o que disse. Devia ser escrito apenas um poema de trem. O meu andava pelos canaviais e o dele...

- O dele tratava da fome. Isso não quer dizer que ele estivesse copiando o seu.

- Não digo que copiava. Queria discutir o tema e as onomatopéias, quando a gente recita e cria o mesmo ritmo e som como de um trem. Vocês entendem, não?

- Eu? Eu gostaria de entender mais sobre isso... – exclamou Manuel a tentar conter o riso – Tentei de tudo lá em Pasárgada e nada aconteceu. Mas, voltando ao assunto dos espíritos de pedra...

- Manuel, nós já discutimos o seu caso na outra noite, lembra?

- Sei disso, mas não é por causa de a casa do meu avô estar situada logo ali perto que eu tenho de estar aqui. Passei a maior parte de minha vida no Rio de Janeiro. Entender essa história é bastante complicado.

- Foi o espírito da cidade, Manuel – disse o homem chamado Carlos - Você evocou demais o espírito da cidade. Assim, você tem a oportunidade de ficar por aqui. Igual ao resto de nós. Como o Joaquim, aqui presente, que também evocou demais o espírito da cidade.

O homem chamado Joaquim sorriu.

- É exatamente como o Carlos diz. Evoquei a cidade em quase todos os momentos de meus versos. Nem as igrejas escaparam.

De repente fiquei todo arrepiado. Estava a viver uma situação surreal. No inicio de uma fria madrugada ao lado de um grupo de poetas mortos. Devia estar sonhando. Dei um forte beliscão num dos braços. A dor me fez soltar um gemido. O braço do Ascenso passou por cima de meus ombros e lá ficou como se nada mais tivesse a fazer.

- Ah, ah, ah! – escutei a risada sonora e grave do poeta – Ele pensa que está sonhando. Rapaz, o que está acontecendo aqui é real, visse? Não é nenhuma sociedade de poetas mortos não. Aliás, meu amigo, só estamos mortos por acaso. Vivemos na pedra e no tempo que envolve a pedra.

– Não, não precisa falar nada. Mas pode participar. A gente se reúne aqui duas vezes por ano. Discutimos o tempo. Isso mesmo, como o Ascenso falou – redargüiu Mauro.

– O tempo? Como diz o título desse livro aqui? – perguntei.

Mauro chegou perto, pegou o livro de minhas mãos, leu o título e mostrou a Carlos. Este sorriu.

– Pode até ser, meu caro amigo. Mas estamos discutindo o tempo da cidade. O tempo real.

– Nada a ver com o tempo absoluto – disse Joaquim – Esse é uma questão matemática.

Reconheci todos eles. Mesmo que a luz da praça estivesse nebulosa pude vê-los. Carlos Pena, Mauro Mota, Ascenso Ferreira, Joaquim Cardoso, Manuel Bandeira e Capiba, que ainda nada tinha falado e que se achava mais distante, apenas acenando de vez em quando com a cabeça.

– Não consigo acreditar....

– Por que não, rapaz? Claro que já morremos há um bom tempo. Mas isso não impede que vivamos na pedra e de vez quando sejamos passantes notívagos por aqui. Afinal de contas, somos os guardiões poéticos do Recife, não somos?

– Exatamente, Ascenso. Mas esse negócio de ficar na pedra naquele lugar onde me puseram já começa a me incomodar.

– Lá vem mestre Capiba reclamar...

– Ele tem um pouco de razão. Isso ele tem! – falou Bandeira – Afinal ele era e ainda é um carnavalesco.

– Exatamente, Manuel! E todo ano no carnaval, quando o Galo da Madrugada aparece é aquela multidão... E não me respeitam! Já colocaram até banheiro público na minha frente. Outra vez fizeram um tapume e nada pude ver. Isso é um insulto. É intolerável!

– Imagina você! – quase grita Bandeira - Poucos ligam para esse negócio de estátua. Por falar nisso Mauro, aquele teu amigo que fica ali mais adiante na praça... o que tem um busto de metal...

–Ah, sim. O Antônio Camelo. Comandou o Diário de Pernambuco depois de mim.

– Tiveram a “bondade” de deixar o coitado míope – explicou Capiba – Roubaram até os óculos dele.

– Olhem... – disse Carlos – Não estou generalizando. Mas esse negócio de ser pedra aqui no Recife não é bom pra saúde. Na semana passada umas madames da noite até sentaram no meu colo e começaram a passar batom em mim. Se pudesse tinha feito outra coisa com elas.

– Ainda bem que só passaram batom... – redarguiu Bandeira – Cagaram bem juntinho de mim outro dia. Fiquei com um fedor dos diabos. E levaram três dias para limpar toda aquela porcaria.

Mauro devolveu o livro para mim. O exemplar tinha passado de mão em mão. Coloquei no bolso da calça jeans para não perder ou me escapar de novo.

– Queria lembrar também uma coisa – disse Ascenso com sua voz tonitruante – Alguns cheira-colas estão a me fazer de guardião das coisas deles lá no cais da Alfândega. Até no meu chapéu eles colocam os tubos.

– Você tem sorte. Ao menos pode cheirar outra coisa que não seja merda – riu Bandeira.

Olhei para eles e fiz um sinal. Todos puseram os olhos em mim. Ascenso falou, quase gritando:

– Fale logo que o tempo é curto!

– Mas e os outros poetas mortos do Recife? Por que não estão como guardiões de pedra por aqui?

Eles sorriram uns a outros. Mauro Mota pegou meu braço e fez com que eu ficasse no centro deles.

– Sei onde você quer chegar. Em nossa primeira reunião discutimos isso. É questão de lembrança mesmo. Às vezes, simplesmente, por falta de conhecimento de quem pensa que tem conhecimento.

– Isso! O Mauro disse certo! Sou mais pela falta de conhecimento – falou Capiba.

– Outros que já foram? Nós falamos sobre eles, sim. O Eugênio Coimbra Júnior, por exemplo...

– E os outros também deviam se tornar guardiões da cidade? Não acha, Bandeira?

– De quais outros falas? Vamos ver se tu lembras. Diga nomes, caríssimo Mauro.

– Que tal Audálio Alves, Edmir Domingues, Jorge Wanderley?

– Não brinca com a memória do Mauro, Bandeira!

– Muito bom. Tem até um poema do Audálio muito bonito...

– Ah....

- Será que recordas os versos, Ascenso?

– Do Audálio? Claro! – quase gritou o poeta – Claro que lembro!

– Diz!

– Ao vestir-me de branco, ressuscito / a glória de meu pai - a de ser puro: / a sua barba aproximando os seres / como um lírio de paz ou de sossego.

– ........que beleza! Continua! – aplaudiu Mauro.

– Meu porte branco e o porte do passado / passeiam nesta tarde paralelos, / conquanto este sorriso não complete / aquele que de amor deixou meu pai.

– Eu gostaria de... – tentou interromper Capiba.

– Deixa o Ascenso acabar, depois você fala! – reclamou Joaquim.

– Meu pai guardou-se em mim. E permanece / na alvura natural de minhas vestes / exposto ao sol, ao sono e ao desespero. /// Em breve passaremos já cansados, / deste meu corpo ao corpo de meu filho / — ambos nele por fim ressuscitados.

– Maravilha! Muito bom! – exclamou Carlos Pena – Vale a pena te escutar, Ascenso.

– Posso falar agora? – pediu Capiba.

– Fica à vontade, homem! – tonitruou Ascenso.

– Já ouviram falar de Medeiros e Albuquerque? Acho que ele também merecia ser guardião da cidade como nós.

– Claro! E faria boa companhia a você, caro Lourenço. O Medeiros não é aquele da letra do hino da Proclamação da República?

– Ele mesmo! Mas tem poemas bonitos também.

– Fala Capiba. Recita.

– Não sou muito bom nisso.

– Se foi você que lembrou...

– Tá certo... Escutem: 'Velas fugindo pelo mar em fora… / Velas… pontos - depois … depois vazia / a curva azul do mar onde, sonora, / canta do vento a triste psalmodia… /// Partem pandas e brancas… Vem a aurora / e vem a noite após, muda e sombria… / E, se em porto distante a frota ancora, / é p’ra partir de novo em outro dia… /// Assim as ilusões. Chegam, garbosas, / palpitam sonhos, desabrocham rosas / na esteira azul das peregrinas frotas… / Chegam… Ancoram n‘alma um só momento; / logo, as velas abrindo, amplas ao vento, / fogem p’ra longe a solidões remotas".

– A madrugada está valendo cada minuto! Mas olha, estamos a esquecer o nosso amigo. Vejam como ele está de boca aberta.

– Estupendo! – exclamei – Estupendo! Isso não pode está acontecendo comigo! Não pode!

– Rapaz! Entre o irreal e a realidade existe uma ponte segura. Claro que pode! Pode! – falou Manuel Bandeira.

– Não desdiga o poeta de Pasárgada. Não desdiga! – disse Carlos Pena, rindo.

– Tantos outros poderiam ser guardiões desta cidade. Uma cidade que precisa de mais memória. E a memória dos seus poetas passa e nem chega ao conhecimento dos mais jovens.

– Exatamente! – exclamei – São poucos os que conhecem os poetas do Recife e de Pernambuco.

– Você conhece algum que a gente não conheça, rapaz?

– Acho difícil que vocês não conheçam...

– Diga o nome de um. Só um! – pediu Joaquim Cardoso.

– Que tal o Olegário Mariano?

– Esse todos nós conhecemos. Sabe algum poema dele?

– Claro que deve saber! Tem de saber! – gritou Ascenso – Se disse o nome do poeta deve saber algum poema dele. Fala!

– Vamos lá! Fala para a gente! Diz! Canta! – pediram Bandeira e Capiba ao mesmo tempo.

Tomei coragem e trouxe à mente o único soneto que sabia do Olegário:

– "Renunciar. Todo o bem que a vida trouxe, / toda a expressão do humano sofrimento. / A gente esquece assim como se fosse / um vôo de andorinha em céu nevoento. /// Anoiteceu de súbito. Acabou-se / tudo... A miragem do deslumbramento... / Se a vida que rolou no esquecimento / era doce, a saudade inda é mais doce. /// Sofre de ânimo forte, alma intranqüila! / Resume na lembrança de um momento / teu amor. Olha a noite: ele cintila. /// Que o grande amor, quando a renúncia o invade / fica mais puro porque é pensamento, / fica muito maior porque é saudade".

– Muito bom, rapaz! Muito bom! Gostei de ver! – disse Ascenso, entusiasmado a me abraçar e apertar – Vamos tomar umas lapadas pra espantar o frio.

– Que bebida é essa que parece de cor verde? – perguntei.

– Cor verde? Alguém aqui viu uma bebida de cor verde? – perguntou, rindo, Mauro Mota.

– Deve ser essa de cor azulada e meio roxa. É essa? – inquiriu Cardoso.

– É essa, mas estou vendo na cor verde – falei.

– Isso é absinto, rapaz. Beba com cuidado. Ou prefere este conhaque?

– Gente, o dia está quase nascendo – lembrou Carlos Pena – Vamos resolver logo isso de uma vez por todas. Quando será a próxima vez?

Reuniram-se todos em círculo e me deixaram de lado. Após alguns minutos voltaram a me olhar.

– Ainda não, Ascenso. Agora não. Ele ainda é de carne e osso. Não é hora.

– Existem outros, caro rapaz. Muitos outros. São os anônimos das calçadas, os poetas dos bares. São os independentes. São aqueles que tentam gritar a favor da multidão, mas que o sistema faz calar. Sinto que você é um deles – falou Ascenso Ferreira, colocando uma das suas grandes mãos sobre meu ombro.

– Todos deveriam ter suas estátuas de pedra – falei – Todos deveriam também ser guardiões.

– Claro, meu amigo – disse Mauro ao meu lado – Mas não é fácil ser estátua e ver o que se passa na cidade.

– A sujeira! A violência! A falta de educação! A manipulação! A ilusão ofertada ao povo pelos governantes... – continuou Cardoso

– Você não iria gostar de participar disso e não ter condições de fazer nada.

– Ser uma testemunha de pedra é uma merda! – falou Ascenso Ferreira.

Sentei sobre o pilar da praça e senti-me invadido por uma modorra. Os poetas estavam a olhar fixamente para mim. Aos poucos fui mergulhando num sono profundo.

O quente sol da manhã me trouxe de volta à realidade. Carros, ônibus, barulho. Homens, mulheres, mendigos, camelôs começavam a tomar conta das ruas. Levantei-me de um pulo. Olhei para os lados e para a estátua do poeta Carlos Pena Filho. Dura e pétrea.

– Que sonho! – pensei – Coisa louca!

Na Avenida Dantas Barreto peguei um ônibus e comecei o retorno para casa. O dia era um sábado. Ao pôr as mãos no bolso esquerdo da calça jeans senti o pequeno livro. Sentei-me num dos bancos do ônibus, peguei o exemplar e o abri.

Tempo da Busca, dizia a página inicial. Passei para a seguinte e lá estava a dedicatória assinada por Carlos Pena (o autor), e mais por Ascenso Ferreira, Manuel Bandeira, Joaquim Cardoso, Lourenço Barbosa e Mauro Mota:

“Caro amigo Rafael. Um dia a história poderá ser repetida, mas com você e outros do seu tempo ao nosso lado na pedra, como novos guardiões desta bela cidade. Continue seu tempo de busca. Ele deverá ser longo. Aceite nossos abraços.”.

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Obs - Neste conto estão inseridos o SONETO DE LINHAGEM (Audálio Alves), RENÚNCIA (Olegário Mariano) e ILUSÕES (Medeiros e Albuquerque).