quarta-feira, 9 de junho de 2010

RECIFE - NA PASSAGEM DAS HORAS

Rafael Rocha – 8 de junho de 2010



Os automóveis passam rápido pelo asfalto da avenida e os bares vão se infestando de homens vazios. Na grande maioria de desempregados, filando algumas horas de lazer aos bolsos dos camaradas possuidores de meios para financiar seus vícios e suas solidões. As buzinas ressoam estridentes. Os canos de escapamento soltam gás carbônico. Os camelôs gritam suas mercadorias e todas elas são especiais e mais baratas que as do mais próximo concorrente. As prostitutas vendem o corpo, sem observar as precárias possibilidades de compra dos homens. Quando consigo uma concentração maior para ver/escutar o bulício da cidade, um ônibus acerta um automóvel e deixa atrás de si todo o tráfego da avenida estrangulado, seguindo-se buzinas, palavrões e gestos obscenos.

Fico estacionado na ponte Duarte Coelho a olhar o coração da cidade a pulsar na Avenida Guararapes. Poderia estar em outro lugar, no começo da Rua Nova a olhar a Avenida Dantas Barreto, pululando de gente, ou na Rua 1º de Março, ou na Avenida Conde da Boa Vista. A visão que se me depara é e será sempre a mesma. No Bar do Sargento, lá no Pátio de São Pedro, sorvo uma cerveja gelada de forma um tanto inconsciente. Vejo no Pátio um oficial militar quase a arrancar o braço de um pivete e a multidão, cercando-os cheia de sadismo, quase todos rindo com o feitiço da violência e outros nos gritos e gestos próprios manicomiais. O garoto, na única coisa a poder fazer, se contorce e chora.

Então consigo observar o quanto a cidade cresceu e se reduziu. Cresceu em pedra vertical, em ferros e pneus, em homens e mulheres transitórios e se reduziu ao horizontal da indiferença. Ainda existe a poesia do antigo, mas todos os cálculos se baseiam na intensidade do agora, pois o amanhã se manifesta como o tarde demais. Não existe salvação para esses pormenores. Os paliativos que possam ser usados para uma humanização completa, estão ao alcance das pessoas, mas essas esqueceram a educação comunitária, vítimas de um crescimento desordenado e sem infraestrutura, criando a realidade dentro da ótica mercantilista, própria aos vândalos.

Há muita coisa que se ver.

Na hora do rush os carros e os ônibus deslizam pelas avenidas, abrindo caminho para o sossego dos bairros e subúrbios e as pessoas andam pelas calçadas numa situação de ligeiros tristes sem comentários para o futuro. Sempre cada vez mais depressa, pois em qualquer esquina existe a possibilidade de um assalto. Sempre cada vez mais depressa para que não se possa enfrentar a herança da futura megalópole capitalista. A noite que começa ainda traz alguns boêmios à antiga para os bares da Rua da Roda, e as avenidas Guararapes e Dantas Barreto ficam coalhadas de filas de transeuntes em busca de seus ônibus suburbanos.

Há muita coisa para se ver. A pracinha da Independência deixou de ser apenas uma praça. Parece-se mais com um grande circo ambulante cheio de personagens felinianos. Tudo anda feio e sujo na esperança de que exista um possivelmente para clarear aos coisas feitas pelos homens. No entanto, as coisas não aparecem ver a luz no fim do túnel e a população continua afeita ao obscuro que obriga ao cultivo da depredação do próprio habitat.

Parece uma imagem surrealista, mas não é. É acima de tudo a realidade pobre de uma pequena metrópole em crescimento vertiginoso. Os camelôs apertam os transeuntes uns contra os outros, na Praça do Carmo, reprimindo a liberdade de ir e vir. Os vendedores de frutas espalham suas preciosidades pelos calçadões da Avenida Dantas Barreto. Mendigos esfarrapados interpelam as pessoas nas filas dos ônibus, nos bares e nas ruas revitalizadas. Mulheres em andrajos amamentam os filhos e os apresentam aos olhos dos passantes em busca da caridade alheia. Nos semáforos. Em frente das grandes lojas. Tudo uma verdadeira Babel, uma feira medieval, um mercado persa. Pense-se como achar melhor.

Todos podem pensar como achar que seja bem. A cidade é um ser abstrato que vive dos estímulos dos homens. A vida escorre nas ruas como o sangue pelas nossas artérias. As pessoas mais velhas lembram com saudosismo a antiga amplitude de suas paisagens. Até chegam a se perguntar, como os jovens de hoje, os idosos dos próximos 50 anos, conseguirão descrever para seus netos a poesia e o lirismo de sua época. O Recife de antanho era a calmaria e a boemia justapostas aos contrastes provincianos da alma nordestina. O Recife, agora, é um cartão postal de vandalismo, e da indiferença dos seus cidadãos.

Na passagem das horas, as ruas vão se esvaziando. Quase todas as pessoas começam o movimento de partida. Querendo vê-las eu fico no mesmo lugar de sempre. Qualquer um desses bares. Qualquer uma dessas pontes. É muito interessante observar uma cidade adormecer. Um adormecimento de solidão momentânea, pois dentro de algumas horas o novo dia irá transformá-la freneticamente. Existem os que partem para o aconchego de suas casas. Existem os que ficam curtindo a noite e sentindo a transformação das horas da cidade. O Rio Capibaribe é o único que não adormece. Sempre a postos como vigilante eterno de todas suas margens.

Tempo para ver, tempo para sentir. Tempo para lembrar e tempo para perguntar a si próprio como essa cidade estará retratada nos próximos 50 anos. Não estarei vivo para ver, sentir todas essas horas, todos esses dias que vão passar. Saio caminhando pelas ruas desertas dentro da escuridão da noite. Aqui e ali algum notívago desponta, fazendo a declinação das sombras entre as paredes dos novos edifícios. Pela Avenida Conde da Boa Vista quero alcançar a Avenida Guararapes e partir para o impacto da solidão do Cais de Santa Rita. Revejo em transe hipnótico os grandes barcos atracando no cais, hoje um enorme estacionamento de ônibus, e lá longe, mas tão perto da minha visão de criança, a ponte Giratória se abrindo e dando passagem a um novo barco a vela.

Na passagem das horas escoa-se o tempo. Pensar na cidade como um ser humano é dar um sentido de vida condizente com sua necessidade de juventude. Sinto que o Recife nunca deveria envelhecer. Sinto que suas ruas, artérias do seu esqueleto de ferro e aço e asfalto e seres humanos, deveriam sempre ficar impregnadas de uma poesia própria. Cidade de um sentimento nivelado aos anseios de todos seus habitantes.

Na passagem das horas a vida continua. Continua para um extremo enigmático. Não podemos saber onde se localiza o ponto de chegada. Se fosse possível solicitar aos deuses defensores dessa cidade edificada sobre os mangues e sobre os areais litorâneos de Pernambuco, assim seja: no encontro das águas dos rios que a cortam, uma gênese de fé e de esperança. Um renascimento humanitário para as gerações futuras. A História não estaciona. Novos tempos trarão novas paisagens, outras novas pessoas e novas memórias para a sua poesia. Quando isso acontecer, o rio, vigilante da terra, poderá cantar a canção que guarda no seu seio desde tempos imemoriais e nós poderemos fazer a evocação da cidade de um modo muito mais eloqüente que o do poeta.

Jamais como o Recife que possamos aprender a amar depois. E ainda menos como o Recife da nossa infância. Sim, como o Recife transbordante de emoções. Como o Recife cheio de raízes íntimas às nossas entranhas. Como o Recife de todos os homens, de todas as mulheres, de todos os poetas. O Recife uniforme. O Recife em trâmites de esperança. O Recife que hoje se constrói para o futuro em extrema pobreza, para se assemelhar aos olhos dos próximos filhos como sempre se compraz: em feitio de água, de sol e de pendores místicos.

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