domingo, 16 de março de 2008

CANTE LÁ QUE EU CANTO CÁ

E como sou um nordestino da gota serena
Neste fim de semana da poesia nacional
Lembro também Patativa do Assaré.
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Poeta, cantô de rua, / Que na cidade nasceu, / Cante a cidade que é sua, / Que eu canto o sertão que é meu. / Se aí você teve estudo, / Aqui Deus me ensinou tudo, / Sem de livro precisá / Por favô, não mêxa aqui, / Que eu também não mexo aí, / Cante lá, que eu canto cá.

Você teve inducação, / Aprendeu munta ciença, / Mas das coisa do sertão / Não tem boa esperiença. / Nunca fez uma paioça, / Nunca trabaiou na roça, / Não pode conhecê bem, / Pois nesta penosa vida, / Só quem provou da comida / Sabe o gosto que ela tem.

Pra gente cantá o sertão, / Precisa nele morá, / Tê armoço de fejão / E a janta de mugunzá, / Vivê pobre, sem dinhêro, / Socado dentro do mato, / De apragata currelepe, / Pisando inriba do estrepe, / Brocando a unha-de-gato.

Você é muito ditoso, / Sabe lê, sabe escrevê, / Pois vá cantando o seu gozo, / Que eu canto meu padecê. / Inquanto a felicidade / Você canta na cidade, / Cá no sertão eu infrento / A fome, a dô e a misera. / Pra sê poeta divera, / Precisa tê sofrimento.

Sua rima, inda que seja / Bordada de prata e de ôro, / Para a gente sertaneja / É perdido este tesôro. / Com o seu verso bem feito, / Não canta o sertão dereito, / Porque você não conhece / Nossa vida aperreada. / E a dô só é bem cantada, / Cantada por quem padece.

Só canta o sertão dereito, / Com tudo quanto ele tem, / Quem sempre correu estreito, / Sem proteção de ninguém, / Coberto de precisão / Suportando a privação / Com paciença de Jó, / Puxando o cabo da inxada, / Na quebrada e na chapada, / Moiadinho de suó.

Amigo, não tenha quêxa, / Veja que eu tenho razão / Em lhe dizê que não mêxa / Nas coisa do meu sertão. / Pois, se não sabe o colega / De quá manêra se pega / Num ferro pra trabaiá, / Por favô, não mêxa aqui, / Que eu também não mêxo aí, / Cante lá que eu canto cá. /

Repare que a minha vida / É deferente da sua. / A sua rima pulida / Nasceu no salão da rua. / Já eu sou bem deferente, / Meu verso é como a simente / Que nasce inriba do chão; / Não tenho estudo nem arte, / A minha rima faz parte / Das obra da criação.

Mas porém, eu não invejo / O grande tesôro seu, / Os livro do seu colejo, / Onde você aprendeu. / Pra gente aqui sê poeta / E fazê rima compreta, / Não precisa professô; / Basta vê no mês de maio, / Um poema em cada gaio / E um verso em cada fulô.

Seu verso é uma mistura, / É um tá sarapaté, / Que quem tem pôca leitura / Lê, mas não sabe o que é. / Tem tanta coisa incantada, / Tanta deusa, tanta fada, / Tanto mistéro e condão / E ôtros negoço impossive. / Eu canto as coisa visive / Do meu querido sertão.

Canto as fulô e os abróio / Com todas coisa daqui: / Pra toda parte que eu óio / Vejo um verso se bulí. / Se as vêz andando no vale / Atrás de curá meus male / Quero repará pra serra / Assim que eu óio pra cima, / Vejo um divule de rima / Caindo inriba da terra.

Mas tudo é rima rastêra / De fruta de jatobá, / De fôia de gamelêra / E fulô de trapiá, / De canto de passarinho / E da poêra do caminho, / Quando a ventania vem, / Pois você já tá ciente: / Nossa vida é deferente / E nosso verso também.

Repare que deferença / Iziste na vida nossa: / Inquanto eu tô na sentença, / Trabaiando em minha roça, / Você lá no seu descanso, / Fuma o seu cigarro mando, / Bem perfumado e sadio; / Já eu, aqui tive a sorte / De fumá cigarro forte / Feito de paia de mio.

Você, vaidoso e facêro, / Toda vez que qué fumá, / Tira do bôrso um isquêro / Do mais bonito metá. / Eu que não posso com isso, / Puxo por meu artifiço / Arranjado por aqui, / Feito de chifre de gado, / Cheio de argodão queimado, / Boa pedra e bom fuzí.

Sua vida é divirtida / E a minha é grande pená. / Só numa parte de vida / Nóis dois samo bem iguá: / É no dereito sagrado, / Por Jesus abençoado / Pra consolá nosso pranto, / Conheço e não me confundo / Da coisa mió do mundo / Nóis goza do mesmo tanto.

Eu não posso lhe invejá / Nem você invejá eu, / O que Deus lhe deu por lá, / Aqui Deus também me deu. / Pois minha boa muié, / Me estima com munta fé, / Me abraça, beja e qué bem / E ninguém pode negá / Que das coisa naturá / Tem ela o que a sua tem.

Aqui findo esta verdade / Toda cheia de razão: / Fique na sua cidade / Que eu fico no meu sertão. / Já lhe mostrei um ispeio, / Já lhe dei grande conseio / Que você deve tomá. / Por favô, não mexa aqui, / Que eu também não mêxo aí, / Cante lá que eu canto cá.

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