sábado, 23 de fevereiro de 2008

A ÚLTIMA DAMA DA NOITE

O forte cheiro de madeira queimada entrou pelas frestas das janelas dos pouquíssimos, velhos e decadentes puteiros da Rua da Guia, exatamente quando o farmacêutico Samuel Santos acabava de sair de um dos quartos do prédio de nº. 115, abotoando a braguilha, depois de cinco minutos de humana fabricação sexual com uma das afilhadas de dona Didi do Orlando.

De repente, como se tangido pelo vento, o cheiro perpassou-se de mato verde em chamas à madeira seca de fogueiras de São João, seguindo-se um penetrar nas narinas de almíscar a incenso, de palha de milho a papel velho de jornal, para, a seguir, dar vez a um cheiro mais parecido com o da naftalina.

Parecia que centenas de fantasmas começavam a voar dentro do ar frio daquele fim de madrugada.

Nos quartos escuros das pensões, as putas se enrodilhavam com os fregueses e as madames com seus gigolôs, sem imaginar que pelos ares do Bairro do Recife acontecia o fim de uma era.

Dona Biu, lá nas distâncias da Rua da Aurora, enrolada em jornais velhos, quase ao lado do mais do que afamado prédio da Sorbonne (que falem dele os mais velhos homens e mulheres recifenses), sentiu-se prenhe do fato consumado.

Em um átimo, acocorou-se, pondo o corpo encostado à parede e viu a fumaça branca (e as outras cor de cinza que se lhe seguiram), espalhando-se por sobre as pontes, quase a tocar as águas do Capibaribe. Os olhos de dona Biu observaram com calma o comportamento da fumaça branca que, vinda da área portuária, escoltada por outras de cores cinza, gerava um nevoeiro fantasmagórico sobre os rios e as pontes da Veneza brasileira.

Levantou-se, e, ajeitando no corpo as vestes maltrapilhas, pôs a tiracolo uma velha bolsa de couro e atravessou a Rua da Aurora, indo até as margens do rio. Na iluminação do dia nascente, ficou a olhar o toque brumoso da fumaça na água e o seu envolver as construções, quase a cobri-las num estranho nevoeiro.

Descobriu-se a chorar.

Exatamente no momento em que as duas tonalidades de fumaça se enovelaram numa só, trazendo o odor de perfumes estranhos e exóticos, dona Biu viu-se a debulhar lágrimas de há muito esquecidas. Quando a fumaça a encobriu por completo ela pensava na madrinha Maria Rosa.

Observou-se menina de quinze anos recebendo abrigo na pensão da Rua Vigário Tenório naqueles idos de 1946, sendo iniciada nos maneirismos das putas, nos fingimentos sentimentais de amores fugazes e sonhos passageiros, em troca de algum dinheiro para sua sobrevivência.

Parou de chorar.

Um sorriso aflorou nos seus lábios quando as reminiscências se fizeram mais fortes. Assim, dona Biu notou ser chegada a hora de agir. Com passos rápidos, seguindo a luz do dia a clarear as ruas do Recife, dirigiu-se à igreja matriz da Conceição dos Militares, na Rua Nova. Lá chegando, persignou-se em frente ao altar-mor e dirigiu-se ao confessionário.

Era o início do último dia do ano de 1986 e o padre Luís Ferrari já se encontrava pronto para receber, escutar e perdoar os pecados do seu rebanho. O religioso sentiu, mais que ouviu, os joelhos de alguém se dobrando ao lado do confessionário e, afastando a cortina, vislumbrou o rosto macilento e envelhecido de Severina Amor, olhando-o do outro lado.

Surpreso com a presença da mulher, mas muito bem compenetrado das suas funções de sacerdote, o padre agiu com rapidez, benzendo-a com o sinal da cruz e inquirindo:

− Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo! Quais os teus pecados, minha filha?

Os olhos de Dona Biu não demonstraram comoção alguma, mas sua voz estava bastante trêmula ao responder:

− Madrinha Maria Rosa tá morrendo! Vim cobrá a promessa que o sinhô fez a ela naquele dia.

(Trecho do meu romance A ÚLTIMA DAMA DA NOITE-capítulo inicial)

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